Pular para o conteúdo principal

Pé na cova e corpo de fora

O Triunfo da Morte (c. 1562), por Pieter Bruegel, o Velho (c. 1525-1569)
Dentre tantos eventos importantes da história, destaco a chamada Peste Negra que, somada a outras pragas, catástrofes sanitárias e guerras, dizimaram boa parte da população da Europa da Idade Média e início da Idade Moderna. A morte era lembrada a todo momento pela peste que assolava cada canto das cidades.

Os cronistas e escritores da época descreveram com riqueza de detalhes o flagelo que, diante de tantos mortos, obrigava à abertura de valas comuns. Do mesmo modo, a pintura artística ilustrava de forma irreverente a morte que não poupava ninguém. Assim, são inúmeras as pinturas de diversos artistas, denominadas de “Dança macabra”, que retratam a impiedade da morte a arrastar para o túmulo pessoas de todos os extratos sociais, desde o camponês até o rei. Era como se todos, indistintamente, vivessem com o pé na cova.

Uma pintura que sempre me chamou a atenção, tanto por seu significado quanto pelos aspectos fantásticos e elementos representados, é “O triunfo da morte” de Pieter Bruegel, nascido no início dos anos 1500, na região onde hoje é a atual Holanda. Esta pintura registra um cenário de extrema desolação e destruição, causados pela batalha do “exército” da morte. É o retrato social de uma época em que nada é capaz de opor resistência ao avanço da falange mortífera.

Os exploradores da desgraça e do sofrimento alheio não são exclusividade de nosso tempo. O temor da morte iminente e o terror das penas do purgatório e do inferno acabaram resultando na exploração religiosa da fé e da crença ingênua das pessoas. Nesta mesma época, vivia um monge que, entristecido, testemunhou não apenas a negação do consolo, mas principalmente as falsas esperanças oferecidas ao povo, tudo sob a condescendência da alta hierarquia religiosa em Roma. Para quem já estava com o pé na cova, eram vendidas as indulgências com a promessa de acesso ao céu e diminuir a permanência no purgatório. Tetzel, um dos maiores vendedores de indulgências da época, dizia: “No momento em que o dinheiro na caixa tinir, do purgatório ao céu salta a alma a seguir.” A história registra estes fatos como o estopim para o grande movimento de Reforma da igreja cristã no século 16.

O monge que se revoltou com esta prática chamava-se Martinho Lutero. Ele sabia que a vida no mundo está sujeita à morte e que dinheiro nenhum resolve nosso problema no plano espiritual. Ele acreditava naquilo que aprendeu lendo as epístolas do apóstolo S. Paulo, de que um cristão batizado está com o pé na cova, mas é um pé só, pois, no mais, já desfruta de vida completa em Cristo, por graça mediante a fé. Vejam o que ele escreveu no ano de 1523:
“O cristão, entretanto, justamente pelo fato de ter-se tornado um cristão, está enfiado na morte e a carrega consigo a toda hora, onde quer que esteja, precisando esperá-la a todo o momento enquanto aqui viver, uma vez que o diabo, o mundo e sua própria carne não lhe dão sossego. Em contrapartida, ele tem a vantagem de já ter saído da sepultura com a perna direita e tem um poderoso assistente que lhe estende a mão, ou seja, seu Senhor Cristo, que, há muito, já saiu, dá-lhe a mão e já o retirou em mais da metade, de modo que não resta mais que o pé esquerdo. Isso, porque o pecado já lhe está perdoado e eliminado, a ira de Deus e o inferno, apagados, ele já vive totalmente em e junto a Cristo e sua parte melhor (que é a alma) participa da vida eterna; por isso, a morte não mais pode segurá-lo nem comprometê-lo, exceto que o resto, a velha pele, carne e sangue precisam decompor-se para, também, renovar-se e, também, poder seguir à alma. No mais, já chegamos totalmente à vida, porque Cristo e minha alma não mais estão na morte.” (Obras Selecionadas de Lutero, vol. 9, pág. 354s)
Abençoado fim de semana a todos!

Publicado no Jornal O Guarani, nº 2501 – 31/03/2017 (Itararé, SP)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O testamento do Cachorro

Hoje, Quarta-feira de Cinzas, procurando alguma coisa interessante pra relaxar e assistir, me deparei com o Ariano Suassuna na TV Senado. Era umas 22 horas, o programa já havia começado a algum tempo, mas peguei muita coisa boa e pérolas valiosas do escritor. Trata-se de uma aula-espetáculo que fora realizada em Junho de 2013, na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional de Brasília (DF). Depois do programa, acabei explorando na rede muita coisa que o Suassuna falou, partindo de sua fala de que não cria mas copia. Copia o que o provo brasileiro traz. Aí vem as histórias contadas, os muitos cordéis que se perdem no tempo. Procurando a história do enterro do cachorro de um antigo folheto de literatura de cordel - que o próprio Suassuna atribui a fundamentação de “O Auto da Compadecida” -, me deparei com Leandro Gomes de Barros, um grande poeta da literatura de cordel, nascido no sertão da Paraíba, e que viveu de 1865 a 1918. A história do testamento do cachorro é parte do folheto "O d...

Noite de São João para além do muro do meu quintal

NOITE DE S. JOÃO PARA ALÉM DO MURO DO MEU QUINTAL Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) Noite de S. João para além do muro do meu quintal. Do lado de cá, eu sem noite de S. João. Porque há S. João onde o festejam. Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite, Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos. E um grito casual de quem não sabe que eu existo. PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro: poemas completos . São Paulo: Nobel, 2008. p. 136 São João, de Di Cavalcanti, 1969 (Óleo sobre tela) E a música do Vitor Ramil inspirada no poema do Fernando Pessoa : NOITE DE SÃO JOÃO Vitor Ramil (Ramilonga, 1997) Poema de Fernando Pessoa Noite de São João Noite de São João Para além do muro do meu quintal Noite de São João Noite de São João Para além do muro do meu quintal Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Sem noite de São João Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Sem noite de São João Porque há São João Onde o fest...

Mãos frias, coração quente, amor ardente

Parece que o frio finalmente mostrou sua face gélida em nossa região. Enquanto escrevo este texto, o celular está marcando cinco graus em Itararé. Na madrugada a temperatura ficou abaixo de zero. Por outro lado, o noticiário internacional está mostrando as ondas de calor no hemisfério norte que dificultam a luta contra o fogo que atinge Portugal, Espanha e EUA. Estas situações de frio e calor lembram as revelações divinas ao apóstolo João no livro do Apocalipse, especialmente a mensagem dirigida à igreja em Laodiceia: “Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca.” (Ap 3.15-16) É bem verdade que o frio em alguns lugares está de “congelar a alma”, mas muitas vezes é um frio de outra natureza que toma conta de nossos corações. Uma frieza no amor a Deus e ao próximo. Uma frieza na fé e nas obras. O apóstolo Tiago escreveu em sua Carta: ...