O ser humano é por natureza um ser contraditório. Uma das marcas de nossa existência é a contradição. O apóstolo São Paulo escancara essa dura realidade: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Rm 7.19). Como não nos enxergamos nesse paradoxo? Ninguém, exceto psicopatas, acorda pela manhã desejando fazer o mal. Entretanto, no decorrer do dia percebemos que muitas de nossas ações foram maléficas, não somente para nós, mas também para o nosso próximo. Se realmente nos importamos com nossas ações e, principalmente como elas atingem nosso semelhante, então nos sentimos infelizes por sermos esta pessoa dividida, facilmente levada pelos ventos do narcisismo e do egoísmo.
Como discípulos de Cristo, nos sentimos ainda mais frustrados com nossa incapacidade de seguir a lei do amor que ele ensinou. Queremos amar e fazer o bem, mas nos deparamos com a lei de que o mal também está em mim. Temos prazer na lei do Senhor, mas ao mesmo tempo nos sentimos prisioneiros da lei do pecado. Que contradição! Diante desse paradoxo, o salmista suplica a Deus: “Baixem sobre mim as tuas misericórdias, para que eu viva; pois na tua lei está o meu prazer” (Salmo 119.77).
São um bálsamo para nossa vida contraditória a consciência de que “as misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã” (Lm 3.22-23). A misericórdia divina livra-nos do peso da culpa e abre os nossos olhos para a vida graciosa. Viver pela graça significa reconhecer que o paradoxo luz e trevas faz parte de nossa existência. Ao admitirmos que também temos em nós o lado sombrio, aprendemos quem somos de verdade e, sobretudo, o significado da maravilhosa graça de Deus. Thomas Merton, um monge e poeta que viveu no século passado, escreveu certa vez que “ser ‘perfeito’ não é tanto uma questão de buscar a Deus com ardor e generosidade, mas ser achado, amado e possuído por Deus, de tal forma que sua ação em nós nos faz completamente generosos e nos ajuda a transcender nossas limitações e reagir contra nossa própria fraqueza” (Vida e santidade).
Somos compelidos pela nossa natureza humana a satisfazer nossos caprichos, mas a graça de Deus torna nossas ações em bem aos olhos do mundo. “Mesmo nas trevas de nossa disposição para o mal brilha a presença e a misericórdia do divino Salvador”, lembra Merton. Essa graça e misericórdia divina é uma dádiva para nós e nos aponta que os caminhos e pensamentos divinos são mais altos que os nossos (Is 55.9). Por isso reconhecemos, como pessoas imperfeitas que somos, que tudo que é bom e agradável na vida é um dom gracioso de Deus. O ser humano é realmente uma contradição em si mesmo, mas a graça divina ensina que não existe “meritocracia” nesta equação.
Vamos, pois, descomplicar nossa vida e desistir de sermos pessoas perfeitas e ainda impor a nós e aos outros o fardo de um padrão moral inatingível. Mas, com a ajuda de Cristo, vamos reconhecer com humildade o que somos e acolher com generosidade a graça e o amor que recebemos. Ao desviarmos os olhos de nós mesmos e fixarmos nossa atenção no poder de Deus, vamos perceber que não merecíamos nada e, no entanto, Deus já nos deu demais e somos profundamente amados por Ele.
Publicado no Jornal O Guarani, nº 2511 – 23 a 30/06/2017 (Itararé, SP)
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