Na década de 80 e 90 o punk rock fazia a cabeça da molecada que queria contrapor-se aos problemas sociais de uma forma rebelde e revolucionária. Uma banda paulistana chamada Olho Seco vociferava assim o niilismo típico de um movimento que afirmava a morte da esperança e do sentido da vida: “Esperança explodiu em mais de mil pedaços. Meu futuro se foi com ela, me deixou em frangalhos. Me sepultem, me enterrem. Estou morto! Morto!” Muitas vezes é assim que nos sentimos: mortos! Não uma morte real, mas igualmente paralisante, quando a vida perde o sentido e a esperança e os sonhos se desfazem como fumaça. Então, nos assemelhamos a “mortos-vivos”, cobertos pela sombria presença de um vazio existencial.
Certo dia, Jesus encarou a cruel realidade da morte de seu amigo Lázaro, que estava na sepultura há quatro dias e já cheirava mal. A humanidade vivencia o estado de Lázaro, morta e cheirando mal, podre em seu interior. Isto fica evidente no sofrimento, na dor, na tristeza, no ódio, enfim, nas tragédias pessoais que conhecemos muito bem e, que quando nos atingem de maneira implacável, revelam toda a fragilidade e impotência de nosso ser terreno diante de males mortíferos.
Com a Quarta-feira de Cinzas, inicia a Quaresma, período de quarenta dias em que a igreja cristã reflete a paixão e morte de Jesus. É também tempo propício para contemplar a finitude e transitoriedade da nossa vida humana. Ao invés de mantê-la distante, a consciência da morte deveria nos impelir a um regime de completa vitalidade: aproveitar intensamente e melhor cada oportunidade preciosa desta vida passageira, amar e ser solidário com nosso próximo, especialmente os que sofrem, e ajudar os que não têm “onde cair morto”.
O choro de Jesus, diante da morte de seu amigo Lázaro, traduz a compaixão de alguém que partilhou a mesma sensação de morte que experimentamos em vida. Ele ainda sofreu literalmente a nossa morte, mas a venceu quando ressuscitou. Para Lázaro reviver e andar, Jesus removeu suas ataduras. Sucede o mesmo conosco: Cristo remove as ataduras da morte e da maldade, de forma que espíritos “malcheirosos” que somos, experimentam a dádiva de viver e amar. O apóstolo Paulo diz: “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2.1).
Se os problemas e amarguras têm o poder de nos mortificar a cada dia, por outro lado, eles são a matéria na qual Deus está trabalhando a vida neste vale de lágrimas. Mesmo sem darmos conta, todo dia estamos sobrevivendo às pequenas mortes (o mal em mim e nos outros). A vitória da vida no dia a dia nos ensina aquilo que os antigos cristãos já sabiam, que a morte ao fim da vida terrena é o “vere dies natalis”, o verdadeiro nascimento do ser humano. A vida já começou em nossa concepção, mas na hora de nossa morte, o Cristo ressuscitado quer nos dirigir o mesmo apelo para uma vida plena e verdadeira que um dia ele fez ao ladrão à sua direita na cruz: “hoje você estará comigo no paraíso” (Lc 23.43).
Publicado no Jornal O Guarani, nº 2497 - 23 a 28/02/2017 (Itararé, SP)
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