Vários escritores contribuíram com sua arte literária para um livro surpreendente. Transcrevo abaixo o conto do Donaldo Schüler, professor que tanto admiro, do livro Paz: um vôo possível (Izabel Bellini Zielinsky (org.). Porto Alegre: AGE, 2004. p. 63-65):
O Gavião-de-Penacho e o Vira-Bosta
Donaldo Schüler
Um gavião-de-penacho persecutia um ratão-de-riacho.O ratão pediu ajuda a um coelho. O coelho negou. Pediu ajuda a uma perereca. A perereca negou. Pediu ajuda a uma formiga. A formiga negou. Pediu ajuda a um vira-bosta. O vira-bosta disse:
- Venha, você é meu hóspede. Veio o gavião-de-penacho e ordenou:
- Me dá o ratão!
- O vira-bosta respondeu:
- Não se aproxime que pisa na bosta. O ratão é meu hóspede. O gavião-de-penacho sem paciência retrucou:
- Deixe de fricotes, vira-bosta. E levou o ratão.
O vira-bosta, de furioso, virou besta, atacou o ninho do gavião-de-penacho para acabar com a raça do infiel. Encostava o nariz nos ovos como se fossem bolinhas de bosta. Os ovos se espatifavam no chão.
O gavião-de-penacho convocou o gavião-rapina. O vira-bosta convocou o vira-bosta-grande. O vira-bosta-grande atacou o ninho do gavião-rapina. O gavião-de-penacho convocou o gavião-mateiro. O vira-bosta convocou o vira-bosta-mauteiro. O vira-bosta-mauteiro atacou o ninho do gavião-mateiro.
O gavião-de-penacho convocou assembleia geral extraordinária de todos os gaviões. Ordem do dia: guerra total à nação dos vira-bostas. O vira-bosta chamou todos os vira-bostas do mundo para acabarem com os gaviões de todas as raças. Sofreram danos graves o gavião-padre, o gavião-vaqueiro, o gavião-azul, o gavião-carijó, o gavião-tesoura, o gavião-de-coleira, o gavião-belo, o gavião-saveiro, o gavião-caboclo, o gavião-quiriquiri, o gavião-caramujeiro, o gavião-pomba, o gavião-pescador, o gavião-carapateiro, o gavião-do-mangue, o gavião-das-taperas.
Quem lucrou com a guerra foi a rabofremosa. Das árvores choviam bolinhas brancas. A oferta de ovos de gavião era muito maior que a procura.
Repórteres quiseram saber a opinião do papagaio sobre a guerra. A resposta do psitacídeo virou manchete:
- É uma bosta.
DONALDO SCHÜLER
É doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS, onde foi titular de Língua e Literatura Grega. Fez pós-doutorado na USP, concluído com o trabalho Eros: Dialética e Retórica. Ministrou cursos (graduação e pós-graduação) no Brasil e no exterior. Atualmente atua como conferencista e professor. Escreveu os ensaios: Teoria do Romance; Narciso Errante; Eros: Dialética e Retórica; Na Conquista do Brasil; Heráclito e seu (dis)Curso; Origens do Discurso Democrático. Romances: A Mulher Afortunada; Faustino; Pedro de Malasartes e Império Caboclo. Traduziu o romance Finnegans Wake, de James Joyce (escolhida como a melhor tradução de 2003 pela APCA). Está traduzindo Tragédias gregas e a Odisseia, de Homero. É detentor do Título Honorífico de Cidadão de Porto Alegre e da Medalha Negrinho do Pastoreio (2002). Recebeu o Prêmio Fato Literário, em 2003, e o Prêmio Jabuti 2004, na categoria de tradução. Patrono da 50ª Feira do Livro de Porto Alegre.
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