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Morte distante

A propósito do Quinto Domingo na Quaresma, amanhã, - quando muitas igrejas irão refletir sobre a ressurreição de Lázaro, conforme o evangelho de S. João, - urge refletirmos também sobre o medo mais profundo de lidarmos com aquilo que mais nos assusta, e ao mesmo tempo, mais nos humaniza, mais nos torna solidários ao gênero humano, como o próprio Jesus que, diante da morte, chorou (quer sentimento mais humano?). O texto abaixo é a introdução do livro "Morte: Sobre a arte de viver", de Roman Krznaric (Zahar, 2016):

"A morte está mais distante da mente ocidental, hoje, do que em qualquer outro período da história. Isso se deve, em parte, ao impressionante aumento da longevidade em todas as nações industrializadas ao longo do século XX. Se você tivesse nascido na Inglaterra nos anos 1830, provavelmente teria vivido, em média, até os 38 anos; em apenas 150 anos, a expectativa de vida dobrou. Nos Estados Unidos, uma mulher de meia-idade nos anos 1950 tinha 10% de chance de viver para se tornar uma anciã de noventa, número que se elevou agora para quase 30%. Esse enorme salto na longevidade talvez seja a maior revolução social ocorrida na história humana. Em termos de mudanças do cotidiano, nada se compara com o fato de que nossas vidas são décadas mais longas do que eram outrora - nem a invenção da imprensa, ou a elevação dos padrões de vida, ou a extensão do direito de voto, ou o nascimento da internet. Graças aos avanços do conhecimento médico e da saúde pública, desafiamos milênios de evolução e garantimos para nós uma dose extra da droga mais inebriante que a humanidade conhece - a própria existência.
Esse súbito aumento da expectativa de vida, que continua ausente na maior parte do mundo em desenvolvimento, foi acompanhado por um declínio radical da presença pública da morte. O surgimento de uma morte medicalizada, no hospital, e a erosão dos ritos tradicionais de funeral e luto tornaram a morte quase totalmente invisível na sociedade moderna. Agora quase nunca vemos corpos mortos, exceto nas ficções sangrentas dos filmes de terror e de guerra, e a morte tornou-se o último assunto tabu de conversa, a maneira perfeita de criar um silêncio constrangedor num jantar festivo. Como Dorian Gray, a criação de Oscar Wilde cujo sonho era permanecer jovem para sempre, conseguimos empurrar a morte, tanto quanto possível, para um lugar quase irreal no futuro.

Essas mudanças exigem que repensemos nossas atitudes em relação à morte. Enquanto os suplementos de jornal estimulam a se refletir obsessivamente sobre o estilo de vida – se devemos fazer ioga ashtanga ou nos mimosear com um cruzeiro no Mediterrâneo –, creio que deveríamos pensar muito mais aprofundadamente sobre o tema estilo de morte. Refiro-me à arte de envelhecer, enfrentar nossa mortalidade e morrer bem. Só podemos dominar essa arte numa cultura que fale sobre a morte aberta e francamente"

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