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Liturgia do Silêncio

Li no Hypeness que os "estudos sugerem que a exposição ao silêncio poderia trazer benefícios à saúde, diminuindo os níveis de estresse e aumentando a sensação de relaxamento. Uma pesquisa de 2006 concluiu inclusive que o silêncio seria mais relaxante do que uma “música relaxante”. Mesmo assim, os estudos sobre o assunto são preliminares e, embora ainda não seja definitivo afirmar que o silêncio faça “bem”, já se sabe que ele ao menos é mais vantajoso em termos de saúde do que a exposição prolongada ao barulho."

Imediatamente me lembrei do saudoso Rubem Alves, que fazia belas reflexões sobre a dádiva do silêncio. Uma vez, transcrevi aqui um texto dele publicado no jornal. Agora recorro a este singelo texto de seu livro Pensamentos que penso quando não estou pensando (Campinas: Papirus, 2007. p. 13-16):
 

Liturgia do Silêncio

Rubem Alves

Muitos anos atrás, passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grands Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio não total, mas, de uma fala mínima. Só falar quando a fala fosse melhorar o silêncio. Isso me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa sem pé nem cabeça com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Fui então informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci. Tenho horror a sermões. Mas me conformei.

O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminada por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U” definiam um espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio. Nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por u vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.

Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino”. Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para e alimentar de silêncio também. Silêncio tem gosto bom. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência e referiu-se a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Malharmé, “A catedral submersa” que Debussy musicou.

A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar, quem faz mergulho sabe, a boca fica fechada. Os poetas conhecem essa experiência. “Nosso olhar é submarino”, escreveu T.S. Eliot. “Olhamos para cima e vemos a luz que se fratura através de águas inquietas...” Submarino também era o olhar de Cecília Meireles: “(...) e no fundo dessa fria luz marinha nadam meus olhos, dois baços peixes, à procura de mim mesma”. Para mim, Deus é a beleza que se ouve no silêncio.

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