I. O agronegócio incendiário e racista (20/09/2009)
"Sequer à beira das estradas os índios são tolerados. Querem vê-los distante ou embaixo da terra para tranqüilizarem suas consciências, escreve Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário - Mato Grosso do Sul, denunciando nova chacina contra a comunidade Kaiowá Guarani, no Mato Grosso do Sul.
Eis o artigo.
“Você quer ver, vem olhar aqui, tem quatro bugres mortos, vem ver!”, o tom de deboche e ameaça era revelador de um quadro tétrico de racismo e ódio que se julgava restrito às páginas da história de extermínio das populações indígenas no continente e no mundo. Mas naquela hora do meio dia de 18 de setembro, à beira da BR 486, a cena era muito real. Enquanto uma integrante do Cimi fotografava o que restou das casas queimadas, onde ainda a fumaça e pequenas chamas eram visíveis, os agentes de segurança e peões da fazenda faziam uma cerca para isolar o córrego e impedir o acesso dos índios, eles davam um show de racismo. “Esses vagabundos tem mais é que morrer!”, exclamavam enquanto repetiam sons de tiros para amedrontar a pessoa que estava fazendo o registro de mais uma violência absurda contra a comunidade Kaiowá Guarani do Apika’y, acampada há uns dez quilômetros da cidade de Dourados.
Damiana, a líder religiosa, esteio do grupo que há mais de uma década luta pelo pedaço de terra tradicional, já tendo sido expulsa diversas vezes, mas que não desiste de ter um pedaço de terra tradicional para viver, fazia o relato dramático da agressão sofrida pelo seu grupo por volta de uma hora da madrugada. Em torno de dez pessoas chegaram atirando sobre os barracos onde se encontravam dormindo os indígenas. Um deles foi ferido na perna atingido por uma bala. No desespero, várias mulheres foram atingidas pelos agressores com socos e pontapés. Logo foram colocando fogo nos barracos, queimando com todos os pertences dos indígenas. Documentos, roupas, bicicleta, lona, madeira, tudo em pouco tempo estava reduzido a cinzas. Os Kaiowá Guarani, indefesos e transtornados, viam mais essa cena de vandalismo.
Quando começou a clarear o dia, foram denunciar o fato e pedir providências.Alguns foram para a Funasa pois estavam feridos. Outros foram à FUNAI relatar os fatos e pedir socorro. Burocraticamente tudo foi muito lento. A administração regional da FUNAI disse que sequer conseguira que um dos procuradores do órgão registrasse a denúncia. Foram então encaminhados ao Ministério Público Federal. Até o meio dia, ninguém dos poderes públicos responsáveis havia chegado até o local, que dista a uns dez quilômetros da cidade de Dourados.
Não fazia ainda uma semana quando há menos de cinqüenta quilômetros daí, no município de Rio Brilhante, tivesse acontecido o despejo da comunidade de Laranjeira Nhanderu e dois dias depois suas casas queimadas pelos fazendeiros e sua milícia armada.
Tudo isso acontece enquanto os Kaiowá Guarani esperam ansiosamente a volta dos grupos de trabalho para concluírem os trabalhos de identificação dos tekoha, terras tradicionais deste povo.Quantas violências, mortes, feridos, presos terão que suportar até terem suas terras demarcadas conforme exige a Constituição e leis internacionais? Sequer à beira das estradas os índios são tolerados. Querem vê-los distante ou embaixo da terra para tranqüilizarem suas consciências.
II. Kaiowá Guarani – a silenciosa guerra colonial (20/09/2009)
Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário do Mato Grosso do Sul, escreve desde Dourados, "uma espécie de filial gaucha", sobre o drama dos Kaiowá Guarani, recordando, no Dia Farroupilha, a saga de Sepé Tiaraju.
Eis o artigo.
“Queremos declarar que estamos muito perplexos e tristes por ser expulso da nossa terra. Aqui na margem da estrada corremos risco de vida devido a alta velocidade de veículos” (Carta da comunidade Laranjeira Nhanderu – 11 de setembro 2009).
A noite envolvia os barracos no km 308 da BR 163, próximo à cidade de Rio Brilhante. As faixas identificavam os ocupantes. Não tardou e uma potente camionete passasse lentamente próximo ao nosso carro para identificar a placa. Porém o sistema de segurança da comunidade foi mais rápido, deslocando-se para o local e evitando qualquer dano ou identificação. Com arcos e flechas, estavam coordenados pelo nhanderu Olimpio. Logo surgiu um carro dos jagunços jogando os holofotes sobre os barracos e o grupo reunido em frente à porteira.
A comunidade denunciou as permanentes ações intimidatórias dos fazendeiros e de sua milícia armada. Contaram fatos recentes em que esse seguranças, fortemente armados, impediram os índios de pegar lenha para cozinhar seus alimentos, perto da ponte do rio Brilhante.
Já nos distantes pampas e Brasil afora a tradição e orgulho gaúcho, que é bom que se diga, nasceu do genocídio de um povo indígena, os charrua. Recontando essa história mal conhecida, escreve Selvino Heck: “A história agora (re)contada faz um desnudamento: o gaúcho surgiu de muito sangue e discriminação. Um povo foi praticamente dizimado. Mas como os humilhados e ofendidos da história sempre resistem, os charrua usaram os meandros da história para permanecerem vivos. Misturaram-se, viraram mestiços, e suas virtudes de povo de heroísmo e valentia de alguma forma aí estão, vivos, ressuscitados no gaúcho. Importa, neste momento histórico, reconhecer a origem e humildemente pedir perdão. Que não se repita na história o genocídio de um povo livre. Que os milhões de índios e negros escravos assassinados neste país gritem mais alto por dignidade, por direitos, por justiça.”(Selvino Heck, setembro 2009).
Neste mesmo Rio Grande, em regiões limítrofes, viveram e foram sacrificados milhares de Guarani, juntamente com Sepé Tiaraju. Hoje o Rio Grande poderia ser eminentemente Charrua, Guarani, Kaingang e de outros povos sacrificados no altar do projeto colonizador.
Avanço do projeto colonizador
“Os guarani-kaiowá foram os povos indígenas mais prejudicados, dada a rapidez e truculência com que suas terras foram tomadas. Sua resistência é comovente, mas sua luta não pode ser considerada um problema só deles. É nossa. Os direitos dos indígenas são também nossos direitos. Assim como o que acontece com eles nos atinge, nos degrada, denuncia a fragilidade de nossos planos de sermos uma potência mundial...Não há mais espaço para que povos tradicionais sejam tratados com um olhar arrogante de colonizador, que decide por eles o que deve ou não ser feito em relação a seus interesses e costumes. Não é mais possível tolerar que sua cultura milenar e seus direitos civis e humanos sejam espezinhados pela ganância, em nome de argumentos que não resistem a uma análise bem informada e honesta.”(Senadora Marina Silva – 17-09-09).
Quando o presidente Getulio Vargas, um dos expansionista gaucho-brasileiro, resolver gauchar essas bandas que foram Paraguai, tinha uma empreitada prévia, que era de desguaranizar a região. Ou seja, os Kaiowá Guarani teriam que deixar de teimar existindo como tal e ocupando essas terras. O sul do então Mato Grosso teria que ser “colonizado”. E assim foi feito. Surgiu a colônia de Dourados, a Vila Vargas, as colônias. E o projeto colonizador continua, com a negação da terra aos índios Guarani e Terena, com a concentração cada vez maior da terra nas mãos de uns poucos donos das agroindústrias, do agronegócio e, ultimamente, nas mãos dos grandes grupos multinacionais. Cadê os ruralistas nacionalistas para gritar contra essa internacionalização do Mato Grosso do Sul? Os índios, como sempre o foram no imaginário e na prática do colonizador, continuam sendo a ameaça e o obstáculo.
Egon Heck
Cimi-MS
Dourados, uma espécie de filial gaucha, 18 de setembro de 2009.
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