Pular para o conteúdo principal

O cheiro do Natal



No dia 17 aconteceu a Cantata de Natal na Igreja Reformada que pastoreio aqui em Itararé. Como sempre, momentos como estes são uma oportunidade de reviver a mensagem do amor de Deus, que veio ao mundo de forma tão humilde e singela. Assim como no primeiro Natal estiveram os humildes pastores das campinas de Belém, aqui também não faltaram as crianças da vila. Como acontece em todos os encontros do povo de Deus, também estiveram conosco a mesma multidão dos exércitos celestiais e também o Deus Menino.

Também tinha um presépio especial feito pelo nosso paroquiano Robert J. Blümel. O presépio reflete o amor que o Robert tem pela igreja e seu Senhor. O pai dele, Martin Johannes Blümel, foi pastor na Comunidade do Redentor (um belo templo de estilo gótico de 1894, próximo ao centro histórico de Curitiba) e na Comunidade Melanchton, no bairro Boqueirão (também em Curitiba), entre as décadas de 60 e 70. A dedicação que Robert tem pela igreja vem de berço. Quando ele me perguntou: “Tem que ser bem rústico?”, não imaginei que ele faria um belo e rústico presépio como nos tempos de Jesus, com cheirinho de manjedoura. Ele utilizou madeiras velhas que já haviam sido usadas num chiqueiro. Nada melhor que aquele cheiro para captar a realidade do Natal!

O ambiente em que o Filho da glória nasceu era um estábulo, muito provavelmente sujo e malcheiroso, cheio de animais e esterco. Hoje o nosso Natal tem cheiro de bolacha pintada, cheiro de panettone de chocolate ou frutas cristalizadas e tantas outras guloseimas. Claro que preferimos esses odores agradáveis ao cheiro de estrume. Mas, para compreendermos de verdade o sentido e a realidade do Natal, precisamos sentir o cheiro do estábulo. É necessário encarar a realidade imunda e dolorida em que nossa existência está mergulhada. Deus veio ao mundo sentir esse cheiro quando tomou a forma humana no ventre de Maria.

Natal é Deus entrando na realidade desprezível e tenebrosa de nossa vida, em que até nossos atos de justiça são comparados ao trapo imundo (Is 64.6). Como escreveu Lutero, Deus poderia muito bem ter encontrado uma rica, distinta, nobre, poderosa rainha, filha de príncipe ou grande senhor, poderia muito bem ter escolhido a filha de Anás ou Caifás, que eram os chefes da nação, mas voltou seus olhos bondosos para uma moça pobre, desprezada e simples para se humanar. E tudo isso para que ninguém se glorie na presença de Deus, dizendo que merece alguma coisa.

Jesus não se recusou a sentir o cheiro de nossa existência ao ser colocado no coxo que alimenta animais em seu nascimento. Jesus sentiu o cheiro do suor no labor da carpintaria. Jesus sentiu o cheiro de nossa morte ao adentrar o túmulo de seu amigo Lázaro. Jesus sentiu o cheiro de nossas enfermidades ao acolher os doentes. Jesus sentiu o cheiro de sepulcro caiado nas lideranças religiosas. Jesus sentiu também o cheiro podre e fétido de nosso sistema quando esteve diante da liderança política e judiciária. Tudo isso é nosso odor que cheira mal, gera sofrimentos e injustiças.

Nós tornamos o Natal tão limpo e cheiroso que corremos o risco de esquecer que Deus amou o mundo de tal maneira (Jo 3.16) a ponto de vir ao encontro de um povo que vivia nas trevas (Mt 4.16), entrar em contato com nossa existência obscura e enfrentar as trevas da morte (Lc 23.44). Ele trocou o cheiro de glória pelo cheiro de manjedoura e cruz para que até aquele cantinho mais escuro e malcheiroso de nossa vida que queremos esconder, possa ser iluminado e perfumado pelo Emanuel. No Natal Deus assumiu nossa imundície e sujeira para sermos o bom perfume de Cristo (2Co 2.15).

Obrigado, Robert, por me fazer lembrar do verdadeiro cheiro do Natal!

Publicado no Jornal O Guarani, nº 2533 – 22 a 31/12/2017 (Itararé, SP)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O testamento do Cachorro

Hoje, Quarta-feira de Cinzas, procurando alguma coisa interessante pra relaxar e assistir, me deparei com o Ariano Suassuna na TV Senado. Era umas 22 horas, o programa já havia começado a algum tempo, mas peguei muita coisa boa e pérolas valiosas do escritor. Trata-se de uma aula-espetáculo que fora realizada em Junho de 2013, na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional de Brasília (DF). Depois do programa, acabei explorando na rede muita coisa que o Suassuna falou, partindo de sua fala de que não cria mas copia. Copia o que o provo brasileiro traz. Aí vem as histórias contadas, os muitos cordéis que se perdem no tempo. Procurando a história do enterro do cachorro de um antigo folheto de literatura de cordel - que o próprio Suassuna atribui a fundamentação de “O Auto da Compadecida” -, me deparei com Leandro Gomes de Barros, um grande poeta da literatura de cordel, nascido no sertão da Paraíba, e que viveu de 1865 a 1918. A história do testamento do cachorro é parte do folheto "O d...

Noite de São João para além do muro do meu quintal

NOITE DE S. JOÃO PARA ALÉM DO MURO DO MEU QUINTAL Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) Noite de S. João para além do muro do meu quintal. Do lado de cá, eu sem noite de S. João. Porque há S. João onde o festejam. Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite, Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos. E um grito casual de quem não sabe que eu existo. PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro: poemas completos . São Paulo: Nobel, 2008. p. 136 São João, de Di Cavalcanti, 1969 (Óleo sobre tela) E a música do Vitor Ramil inspirada no poema do Fernando Pessoa : NOITE DE SÃO JOÃO Vitor Ramil (Ramilonga, 1997) Poema de Fernando Pessoa Noite de São João Noite de São João Para além do muro do meu quintal Noite de São João Noite de São João Para além do muro do meu quintal Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Sem noite de São João Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Do lado de cá, eu Sem noite de São João Porque há São João Onde o fest...

Mãos frias, coração quente, amor ardente

Parece que o frio finalmente mostrou sua face gélida em nossa região. Enquanto escrevo este texto, o celular está marcando cinco graus em Itararé. Na madrugada a temperatura ficou abaixo de zero. Por outro lado, o noticiário internacional está mostrando as ondas de calor no hemisfério norte que dificultam a luta contra o fogo que atinge Portugal, Espanha e EUA. Estas situações de frio e calor lembram as revelações divinas ao apóstolo João no livro do Apocalipse, especialmente a mensagem dirigida à igreja em Laodiceia: “Conheço as suas obras, sei que você não é frio nem quente. Melhor seria que você fosse frio ou quente! Assim, porque você é morno, nem frio nem quente, estou a ponto de vomitá-lo da minha boca.” (Ap 3.15-16) É bem verdade que o frio em alguns lugares está de “congelar a alma”, mas muitas vezes é um frio de outra natureza que toma conta de nossos corações. Uma frieza no amor a Deus e ao próximo. Uma frieza na fé e nas obras. O apóstolo Tiago escreveu em sua Carta: ...