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Santa Calvície!


Estava pesquisando na internet o texto original de um hino de Sinésio de Cirene (c. 365- c. 414) que está no hinário da Igreja Luterana do Sínodo Missouri (Lord Jesus, Think on Me, traduzido por Allen William Chatfield, sob o n.º 610 no Lutheran Service Book). A prova de que os fatos curiosos nos chamam a atenção, é que minha pesquisa tomou outro rumo ao verificar que este filósofo neoplatônico e bispo de Ptolemais, antiga cidade da província romana de Cirenaica, escreveu um Elogio da Calvície. Sinésio de Cirene (370-413) escreveu o Elogio da Calvície como resposta ao Elogio da Cabeleira de Dion de Prúsia ou Dion Crisóstomo

O Elogio era um gênero literário de estilo pomposo para celebrar alguma divindade, personagem, cidade, etc. Posteriormente começou a aparecer os elogios do papagaio, do mosquito, da cabeleira, da mosca, da calvície, etc. O gênero chega ao renascimento com o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdam. Há muitas traduções das obras de Sinésio na internet, principalmente em inglês, inclusive do Elogio da Calvície. Não encontrei o texto online em português na íntegra.

Transcrevo apenas alguns trechos transcritos do Googlebooks de O elogio da calvície de Sinério de Cirene, traduzido por João Batista Camilotto e publicado pela EDIPUCRS (Porto Alegre, 2000):

Quanto a mim, desde que a desgraça sobreveio e o cabelo começou a ir-se-me embora, confrangeu-se-me o coração. Depois, continuando o mal - primeiro num paulatino progredir, em seguida com mais rapidez, como numa guerra devastadora - vi-me tratado mais rudemente do que os Atenienses, quando Arquídamos lhes foi arrasar as árvores até chegar ao burgo de Acarnes.
A breve trecho achei-me reduzido a tais extremos que me assemelhava a um desses rústicos habitantes de Eubéia que só usam cabelo na parte posterior da cabeça, como no-los mostra a poesia, quando os conduz diante de Tróia.
Em minha mágoa, a qual deus, a qual demônio não acusei, então! Veio-me mesmo a tentação de escrever o elogio de Epicuro. Não que eu partilhe das idéias que ele se faz a respeito dos deuses; tinha eu, no entanto, boas razões para atacá-los. Daí por que me surpreendia a dizer comigo mesmo: Onde está a Providência que a todos deve tratar-nos segundo nossos méritos? Que crime teria cometido para ser objeto de horror aos olhos das mulheres? Aos olhos das mulheres da vizinhança, ainda vai; ninguém menos do que eu abusa dos prazeres de Vênus, e em pontos de castidade posso pedir meças ao mesmo Belerofonte. Mas as mães, mas as irmãs são sensíveis, diz-se, à beleza dos filhos, dos irmãos; testemunha é disso Parisátis que declara aversão ao rei Artaxerxes por causa do belo Ciro.
Assim é que eu me queixava dos deuses e minha desgraça me parecia insuportável. Pouco a pouco, porém, o hábito e a razão me ajudaram a suportar a tristeza, e eu principiava a consolar-me, e a paciência me ensinava a suportar meu mal.
Eis senão quando Dion reaviva minhas mágoas. A dor excitada torna a assaltar-me.
O bispo Sinésio de Cirene me fez lembrar de outro bispo Sinésio: o bispo emérito da Diocese de Santa Cruz do Sul, Dom Sinésio Bohn, não por causa de calvície, mas pelos alegres momentos de conversa e diálogo que já tivemos. Mas minha pesquisa foi instigante e só parou no texto Em louvor à calvice, do Rubem Alves:

Em louvor à calvice

As crianças sofrem muito. Nós, adultos, rimos do sofrimento das crianças. Elas sofrem por coisas tão bobas. Bobas para nós. Não são bobas para elas. Pois uma de minhas netas, cujo nome não vou revelar para que ela não se sinta embaraçada (ela é aquela que gosta de ficar observando as estrelas), tinha um sonho: queria que o seu avô, eu, fosse até a sua escola para contar estórias para seus coleguinhas. Ela gosta tanto de mim, gosta tanto das minhas estórias, e queria que seus coleguinhas me conhecessem para ver que avô legal ela tem. Como preparativo para esse encontro seus pais lhe deram vários dos meus livros para que a professora lesse as estórias para a criançada. Aconteceu, entretanto, que num desses livros havia uma fotografia minha que, por ser verdadeira, apresentava-me com a calva que faz parte do meu visual. Pois uma de suas coleguinhas, ao ver a minha calva, teve um ataque de riso. Para ela não havia coisa mais engraçada que um homem careca. Quando os pais de minha neta foram buscá-la na escola, ao fim do dia, encontraram-na num pranto incontido, entrecortado por soluços: “Papai, não quero que meu avô vá à minha escola contar estórias. Não quero que meus colegas riam da careca do vovô…” Fiquei comovido com o sofrimento da minha neta e o seu cuidado para que ninguém risse de mim. Como disse, as crianças sofrem muito. O seu choro era uma prova de amor.
Motivado por esse incidente decidi-me a escrever um elogio à calvície que, sem dúvida alguma, representa um notável avanço na evolução humana no sentido do seu aprimoramento estético, ético e intelectual.
Só conheço um relato histórico que diga o contrário. Mas, como é sabido, todas as regras tem exceções. É o caso do profeta Eliseu, homem de poderes extraordinários, todos eles confirmados pelo fato de estarem registrados nas Escrituras Sagradas que foram diretamente inspiradas por Deus e não mentem jamais. Aconteceu que o profeta Eliseu era careca. E ele, como a menininha, morria de rir quando via sua calva refletida no espelho. Só que o seu riso não era um riso feliz. Era riso de raiva e de inveja. Ele se achava ridículo. Queria mesmo era ser como Sansão. A solução teria sido usar uma peruca, fazer reimplante ou apelar para o interlace. Mas esses recursos não existiam naqueles tempo. Admira-me que ele não tenha se lembrado do recurso extraordinário do milagre. Homem de Deus que ele era, coisa que seus muitos milagres o comprovam, não lhe passou pela cabeça fazer um modesto milagre em benefício próprio. Bastava que ele dissesse: “Cabelos, nasçam na minha cabeça e transformem-se numa glamorosa cabeleira de cabelos sedosos!” É claro que Javeh não iria recusar milagre tão simples a um homem que tanto o temia, considerando-se que, como dizem inúmeros adesivos colados nos carros, “Deus é fiel”. Por falta de imaginação continuou careca. Pois vejam o que aconteceu, tal como no-lo relata o livro de II Reis 2: 23: “Ao subir pelo caminho uns rapazinhos que saíram da cidade zombaram dele dizendo: Sobe, careca! Sobe, careca! Eliseu virou-se, olhou para eles e os amaldiçoou em nome de Javeh. Então saíram do bosque duas ursas e despedaçaram quarenta e dois deles. Dali ele foi tranqüilamente para o monte Carmelo…” Isso é prova cabal do amor que Deus tem pelos carecas, amor muito maior que o amor por quarenta e dois rapazinhos. Portanto, cuidado todos vocês, que zombam dos carecas! É possível que ursas estejam à espreita… (Eu não sabia que naquela região havia ursos. Mas para Deus nada é impossível…)
Eu jamais faria uma coisa assim, porque gosto muito da minha careca e muito mais ainda de quarenta e dois rapazinhos. O fato é que desde a mais remota antigüidade a calvície tem sido considerada uma evidência de virtudes paranormais. Sugeriria, inclusive, aos biólogos, que fizessem uma pesquisa sobre o sentido da calvície no processo da evolução. Isso é claramente evidente àqueles que têm olhos científicos. Pois os nossos ancestrais mais primitivos, os macacos, eram coberto de pelos, em todas as partes do corpo. Quando se vê um homem muito peludo o que se diz é: “Ele se parece com um macaco”. Podemos concluir que abundância de pelos indica que aquele que os tem ocupa um lugar mais primitivo na linha da evolução e que, à medida em que a evolução faz o seu trabalho, os pelos vão desaparecendo. Calvície, também, é prova de masculinidade. As mulheres jamais ficam carecas, a não ser que haja alguma enfermidade. Já está demonstrado que a calvície está relacionada a uma abundância de hormônios masculinos, o que levanta a hipótese de que os calvos sejam mais potentes que os cabeludos. A verificação dessa hipótese seria muito fácil: bastaria que, nas farmácias, se registrasse a proporção de cabeludos comprando viagra em relação aos carecas.
A calvície, assim, é índice positivo de virilidade. E não somente isso. Também virtudes másculas, intelectuais e de caráter. Ulisses, o herói da Odisséia (ele também se chamava Odisseu) era calvo. Sua calvície nada retirava de seu heroísmo e beleza. Ao contrário. Parece que o seu heroísmo estava diretamente ligado à sua calva. Será que a calva indica uma relação privilegiada com os deuses? É uma hipótese a ser investigada. O herói da Guerra de Tróia, imortalizado por Heródoto, navegou perdido pelos mares por dez anos, pensando na sua doce Penélope. Será que os calvos são mais apaixonados e mais fiéis? Outra hipótese a ser objeto de uma tese de mestrado. E ela o esperava, lutando contra os cabeludos que a queriam por esposa. De dia tecia, de noite destecia… Enquanto fazia isso pensava no abraço do seu doce e maravilhoso careca, Ulisses. Os carecas têm um charme especial, charme que foi cantado especialmente pelas mulheres, numa marchinha antiga de carnaval: “É dos carecas que elas gostam mais…”
Vejam agora os cabeludos. Hitler tinha cabelos em abundância na cabeça, e na região sub-nasal. Igual ao Saddam Hussein (o que explica o curiosíssimo fato de que todos os seus soldados tinham bigode preto. Penso que, talvez, cabelos e bigodes fossem uma exigência para se entrar no exército, juntamente com carteira de identidade e exame médico). Também o Demolidor do Presente, que se auto-proclamou Libertador do Iraque, é dotado de glamorosa cabeleira. Coisa que se repete com o Demolidor do Futuro, que gasta oito horas por dia fazendo musculação, o que é uma manifestação incontestável de sua inteligência e dos seus valores. Não foi à toa que os eleitores esclarecidos da Califórnia, estado de universidades famosas, o elegeram como governador. De fato, sem educação não se faz democracia. Acrescento, à guisa de exceção a ser levada em conta, o embaixador Itamar Franco, que se elegeu como governador das Minas Gerais graças ao seu topete. Os cabelos – ou ausência deles – revelam a alma. Você pode imaginar uma alma com bigodes e cabeleira?
O fato é que a calva é charme. Lembram-se do Yil Bryner, que fez a primeira versão de Ana e o Rei de Sião? E do detetive Kojak que chupava pirulito? Os dois, sem um fio de cabelo na cabeça! E charmosíssimos. Másculos. Até as modelos perceberam o charme da calva e fizeram raspar os seus cabelos. Desfilam na nudez simples de uma cabeça lisa, destituída de pelos. Se os homens fossem coerentes eles usariam suas lâminas de barbear não só para raspar os resíduos trogloditas da face como também para raspar os mesmos resíduos que teimam em crescer na cabeça.
Assim, só posso proclamar com orgulho e sem usar boné pra esconder: “Sou careca e sou feliz!” E quero dizer pra minha neta: não se apoquente. Seu avô é careca é conta estórias… Não é bom? Você preferiria que seu avô fosse cabeludo e não contasse estórias?
Rubem Alves (postado por tina)
Depois de postar este texto, voltei à pesquisa do hino do Sinésio de Cirene. Se encontrá-lo, vou publicá-lo no Teologia e Liturgia Luterana.

Comentários

  1. É Ruim ter calvicie seja na adolescencia ou com mais idade. Veja Como Solucionar Isso com Koruvital Funciona

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