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Celulares e correntes douradas


Quem fala ao celular em local público sentencia os demais a compartilhar o que ninguém merece

MARCOS ROLIM*
marcos@rolim.com.br

A cena é banal. Sala de espera do banco, várias pessoas aguardando pelo atendimento. Um cliente dirige-se a um balcão lateral, à procura de alguns envelopes, quando seu celular toca, estridentemente. Ele atende e mantém conversação sobre uma festa. O colóquio envolve os engradados de cerveja necessários e quem ficou de comprar a carne, entre outros temas relevantes. O homem usa uma corrente dourada que aparece sob a camisa desabotoada e fala alto. Diz "ceva" ao invés de cerveja. Fico me perguntando o que eu tenho a ver com as "cevas" ou com a costela.
Pergunto-me muito. Nem sempre obtenho respostas. Certas dúvidas me acompanham por meses. Elas ficam em um canto, hibernando, até que, súbito, pulam faceiras diante da impressão de que encontraram uma resposta. Houve uma época em que se podia ler ou descansar em um ônibus, por exemplo. Isto foi antes do celular. Hoje, há uma tortura nos ônibus, porque as pessoas conversam todo o tempo aos telefones e sobre coisas tão complexas e interessantes como "cevas". Devemos proibi-las?
Há avanços, claro. Aparentemente é menor o número de pessoas que atendem o telefone durante sessões de cinema. Em compensação, muitas seguem consultando e brincando com suas maquininhas, produzindo, em uma sala escura, fachos de luz sobre os olhos dos que estão sentados atrás delas.
Em cada um destes comportamentos, o que preside a conduta de quem manipula o aparelho é a total desconsideração pelos outros. Quem fala ao celular em local público sentencia os demais a compartilhar o que ninguém merece.
Em um texto célebre intitulado "Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos", Benjamin Constant sustenta que, para os antigos (Roma, Esparta, Atenas), a liberdade era o mesmo que liberdade política. Alguém só poderia ser considerado livre na medida em que tomasse parte do debate político e pudesse, assim, ser protagonista nos temas que, por definição, interessam a todos. Já para os modernos, a liberdade passou a ser, cada vez mais, a liberdade individual, o direito de fazer aquilo que a lei não proíba etc.
Se um ateniense dos séculos V e VI  A.C. nos visitasse, concluiria que somos todos escravos; porque submetidos a decisões políticas tomadas por outrem. Em compensação, se fôssemos transportados para qualquer das sociedades clássicas, nos sentiríamos imobilizados em um mundo onde tudo estava definido por valores comunitários e onde, a rigor, a própria noção de "indivíduo" era desconhecida.  Ganhamos muito com a liberdade individual, claro. Só o que não é evidente é o que perdemos com o fim da liberdade política _ no sentido clássico.
No caso brasileiro, a perda é agravada pela incultura disseminada _ inclusive entre os que tiveram acesso à educação _ e por um individualismo cada vez mais radical que tem produzido consumidores, mas não cidadãos. O brasileiro típico detesta política. Muitos, inclusive, assumem o desinteresse pelas questões públicas e zombam dos que se dedicam a elas por vocação. Os resultados são cada vez mais claros e assustadores. Renan Calheiros e Marco Feliciano fazem parte do pacote. Acho que os celulares e as correntes douradas também.

* Jornalista

Artigo publicado originalmente em Opinião ZH em 24 de março de 2013.

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